Sobre bordados e paradigmas
*Helcio
Kovaleski
O início de “Chapeuzinho Vermelho”, do grupo Ciranda da
Leitura, de Rio Branco (AC), apresentado no dia 25 de agosto no Teatro de Arena
do SESC, foi uma “madeleine” proustiana. O pano de prato passadinho e com
bordado colorido que esvoaçava de forma delicada da cesta de Chapeuzinho
Vermelho (interpretada por Lázara dos Santos)
trouxe à lembrança uma cozinha típica, daquelas bem arrumadinhas, com panelas,
louças, toalhinhas e peças de biscuit para todo lado, onde há um fogão a lenha
rodeado pela vovó e por seus netos, com direito a chocolate quente e pinhão
assado na chapa. Enfeitando tudo isso, um belo pano de prato todo bordadinho,
pendurado no fogão – bordadinho como a história que está sendo contada pela
Vovó. Eis o retrato de uma vida campesina que está se tornando rara neste país.
Voltando ao espetáculo, mais do que uma metáfora, o bordado
do pano de prato foi a constatação de que se trata de uma bela e delicada
montagem focada (soube-se depois) em um público muito especial: crianças com
faixa etária a partir de três anos. Direto ao ponto: não se podia esperar outra
coisa de uma atriz/diretora tão talentosa e dedicada como Marília Bomfim.
Interessante notar que o Fetac em Cena 2013 programou
dois espetáculos baseados nessa história clássica um dia após o outro. Na noite
anterior (24), o grupo AE, de Cruzeiro do Sul (AC), apresentou “Contos de
Contos”, no mesmo espaço, com uma versão bastante livre e a inclusão de outras
narrativas. Já a montagem de Marília trouxe a história reescrita pelo
compositor Braguinha.
Segundo Maria Cristina Gomes Barbosa de Lima, na
dissertação de mestrado “Chapeuzinho Vermelho: a reescrita de Braguinha e Rubem
Alves” (Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora [MG], 2008), os
contos de fada eram concebidos, em meados do século XVII, como entretenimento
dos adultos e narrados em reuniões sociais, salas de fiar, nos campos “e em
outros ambientes onde eles se reuniam”. “Somente a partir do século XIX é que
se transformaram em literatura infantil. Muitas das preocupações que povoam a
mente das crianças são projetadas, inconscientemente, nos vários personagens da
história alimentados por conflitos e vivenciados pelas crianças no seu processo
de crescimento”, afirma ela, no estudo do conto originalmente escrito por
Charles Perrault e adaptado pelos Irmãos Grimm.
É sempre bom ver uma montagem que se propõe a recontar uma
história clássica utilizando soluções bastante imaginativas e que desafiam a
lógica semiótica do espetáculo. Desse ponto de vista, aliás, é bom lembrar que
absolutamente tudo o que aparece num espetáculo é um signo. Portanto, assim, de
cara, a primeira grande solução de Marília foi misturar linguagens: atores em
cena com manipulação de bonecos. Enquanto as relações entre esses dois
universos fica no registro dos diálogos, não há novidade alguma. Mas quando o
boneco da Vovó é pego pelo Lobo Mau, nessa interferência de um mundo no outro
ocorre um rompimento com o paradigma e, de resto, com a gramática e a semântica
do espetáculo. Estabelece-se, aí, um conflito que é extradiegético – ou seja, não
é parte intrínseca da “história” que está sendo contada. A fruição, aí, então,
é dupla, porque é tanto da forma quanto do conteúdo, e de quebra fica uma
situação “stand by” a se resolver. Mas não demora muito para isso acontecer: quase
no final da história, o boneco da Vovó volta ao seu cenário natural. Fecha-se,
assim, o círculo do teatro.
Outro grande momento foi a entrada da Caçadora (Ione Soares,
que também faz a manipulação dos fantoches da Mãe e da Vovó). A solução de ela
entrar com aquela matilha de cães de pelúcia pendurada na cintura é um achado
semiótico de grande resolução cênica. Só ficou faltando a atriz brincar de
manipular mais os cãezinhos, para deleite da criançada.
A mensagem subliminar para o público, notadamente para os
pimpolhinhos, é esta: no mundo da imaginação, pode tudo, e o teatro vira uma
grande brincadeira – o que, aliás, deve ser o grande barato de uma montagem
para crianças.
No mais, importante assinalar que é necessário repensar a
execução de músicas inteiras no espetáculo. Não se deve esquecer que tudo
aquilo que compõe uma montagem – figurino, adereços, sonoplastia, texto,
iluminação – deve estar a serviço do teatro, e não o contrário. Claro que é
importante mostrar as músicas para a criançada, mas, se for de alguns trechos,
apenas, o poder de sugestão a esse público difícil torna-se exponencial.
Dito isto, detalhes como, por exemplo, os excessivos
volteios de Chapeuzinho Vermelho ao som da clássica letra “Pela estrada
afora...”, de Braguinha, e a repetição das pequenas é ótimas coreografias do
Lobo Mau (Francisco Oliveira, o Tanaka) podem ser mais dosados. Outra sugestão é
equalizar melhor o volume do violão, pois isso pode comprometer a fala dos
atores (em certo momento, foi difícil escutar o que a Chapeuzinho falava).
No mais, é interessante notar ainda a adaptação da trilha
sonora para o tom cromático do repente e do cordel – outro achado –; e o uso de
material reciclável na máscara do Lobo Mau, uma ótima solução utilizada há anos
pelo grupo GPT, do qual Marília também faz parte (como não lembrar-se de “A
Menina e o Palhaço”, de 2001, em que ela e o ator/diretor Dinho Gonçalves
construíram todo o cenário e os adereços com lixo reciclável?). A pergunta é:
por que não fazer assim também em outras máscaras e adereços utilizados na
montagem?
Por último, é digna de nota com louvor a atuação de Tanaka
como o Lobo Mau. Como é gratificante ver um ator em idade madura em cena com essa
disponibilidade e generosidade. Como foi dito no debate após a apresentação, o
risco de Marília é ter de mudar o nome do espetáculo para “Lobo Mau”, tal é a
performance “rouba-cena’ de Tanaka. Essa foi, sem dúvida, uma das belas imagens
do Fetac em Cena 2013.
*Helcio Kovaleski é
ator, diretor, crítico de teatro e já fez trabalhos como dramaturgo e
dramaturgista. Natural de Ponta Grossa (PR), atualmente mora em Brasília (DF).
Foi um dos debatedores do Fetac em Cena 2013.
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